Segundo ele, a criação do ECA foi possível graças a sinergias no processo constituinte da legislação - uma conjunção histórica advinda com o século da universalização dos direitos da criança e do adolescente, com a crítica (acadêmica e ativista) de um século de intervenções do Estado na política de bem-estar do menor, com a construção de novos movimentos sociais, em especial o de defesa dos direitos da criança e do adolescente, e, por fim, com a redemocratização do país, um processo constituinte e uma nova legislatura no Congresso Nacional com parlamentares identificados com a justiça social.
No encerramento da fala, o professor exibiu um trecho de documentário que relata um momento histórico do país, em 1989, quando aconteceu em Brasília o II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Nele, cerca de 750 crianças de rua de todo o Brasil e de outros dez países latino-americanos ocuparam o Plenário do Congresso Nacional e fizeram uma votação simbólica de aprovação do ECA.
Depois de uma série de audiências públicas, o projeto de lei foi votado e aprovado pelo Senado em 25 de abril de 1990. Recebeu a aprovação da Câmara em 28 de junho e foi homologado pelo Senado no dia seguinte. Sancionado pelo presidente da República em 13 de julho de 1990, o ECA entrou em vigor em 14 de outubro do mesmo ano.
Em seguida, o outro palestrante da live, o Procurador de Justiça no Ministério Público e Paraná (MPPR) Murillo José Digiácomo, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, especialista em Direito Civil e Direito do Trabalho e professor de Direito da Criança e do Adolescente da Escola Superior do MP e da Escola Superior da Magistratura, reforçou o histórico da mobilização dos jovens que levou ao Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, fez a seguinte pergunta às mais de cem pessoas que acompanhavam a live: por que nós não estimulamos que eles ocupem esse espaço que já está à sua disposição para poder continuar tal protagonismo?
"Preparar a pessoa para exercer a sua cidadania e ser cidadão não é só votar a cada quatro anos; é justamente lutar pelos seus direitos, conhecer os seus deveres e fazer com que os jovens de alguma forma se mobilizem, que digam o que justamente eles querem de nós num plano coletivo, que participem das reuniões do Conselho de Direito e da Câmara Municipal, que levem suas propostas, porque eles sabem melhor do que nós e melhor do que qualquer técnico ou burocrata o que é melhor para eles", explica.
Porta-voz de minorias aproximou passado e presente
Foi com esse intuito de promover uma escuta ativa para podermos aprender com as crianças e adolescentes e, ao mesmo tempo, proporcionar-lhes o conhecimento de toda essa trajetória que a coordenadora da live, a Promotora de Justiça Helen Crystine Corrêa Sanches, abriu o evento com a apresentação musical da cantora, compositora e assistente social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Dandara Manoela.
Porta-voz das tradições culturais afro-brasileiras, a jovem Dandara revela em suas letras realidades como o abuso sexual infantojuvenil. "Quero ver quem vai tirar / a dor e a cicatriz. / Quero ver quem vai limpar / a sujeira do infeliz. Isso eu quero ver passar. / Passar longe daqui / e tranquila respirar. / Força pra poder seguir" é apenas um trecho da letra-denúncia cantada na live.
Após a apresentação de Dandara, Sanches tratou da importância de discutir temas que foram grandes desafios para implementação do ECA. "A arte nos humaniza, e a gente espera também que, através da arte e de músicas com essa conotação social, a gente possa cada vez mais chamar a atenção das pessoas para problemas tão graves como os índices de homicídios de jovens e adolescentes negros e o abuso sexual".
Na sequência da apresentação musical, foi exibido um documentário com relatos dos Procuradores de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto (MPPR), Gercino Gerson Gomes Neto (MPSC) e Afonso Armando Konzer (MPRS). Os três são referências na área até hoje e estiveram entre os principais atores da implementação do ECA nos seus estados logo depois da aprovação.
A mobilização da rede de proteção é fundamental para o avanço do ECA
Cientes de que o assunto não se finda e de que a constante troca de ideias é fundamental para a implementação do ECA, os participantes da live deixaram para os espectadores a mensagem de que o Estatuto está em permanente construção e de que os avanços dependem de uma participação efetiva de toda a sociedade.
Digiácomo afirmou que o Estatuto não é uma lei estática e destacou a importância do trabalho em rede. "Outras leis complementam o estatuto para que nós possamos ir colocando em prática aquela sua proposta de transformação, e uma das questões com que nós temos que trabalhar é justamente a implementação da rede de proteção", explica.
No mesmo sentido, a coordenadora do evento falou que precisamos capacitar, formar e cada vez mais atuar em rede. Segundo Sanches, esse é o desafio. "Já avançamos muito. O Estatuto foi uma mudança de paradigma. Precisamos tirá-lo do papel e transformá-lo em realidade cada vez mais".
Tal entendimento, somado ao protagonismo infantojuvenil mencionado anteriormente, vem corroborar com Digiácomo. "A educação transforma as pessoas e as pessoas transformam o mundo. Eu acredito nisso, e o Estatuto prega a transformação. Nós precisamos preparar os nossos jovens e os profissionais das diversas áreas para que eles possam se engajar de corpo e alma nesse processo de transformação", conclui.