02.08.2012

Contestado: a ocupação da terra em debate

No segundo dia do seminário, Margarida Moura (E) e Paulo Machado (D) abriram os debates falando sobre a ocupação da terra e formação social no Contestado. O evento segue até sexta.

Margarida Maria Moura
Paulo Pinheiro Machado
Clique na imagem e veja a Programação do evento
O Seminário Nacional 100 Anos da Guerra do Contestado teve continuidade na manhã desta quarta-feira (1º/08), com palestras de Margarida Maria Moura, professora da USP e Doutora em Ciências Sociais, e Paulo Pinheiro Machado, professor da UFSC e Doutor em História. O evento prossegue nesta tarde com as mesas redondas sob os temas Ferrovia, madeireiras e empreendimentos econômicos na região do Contestado e Dimensões Jurídicas do Contestado e com a apresentação do filme Contestado: A Guerra desconhecida, de Sérgio Rubim.

A palestrante Margarida Maria Moura apresentou uma visão sociológica e antropológica do conflito, em especial sobre a transformação do ambiente social da região que levou à Guerra do Contestado. Já Paulo Pinheiro Machado falou sobre a ocupação da terra e como os movimentos econômicos influenciaram no acontecimento do evento histórico.

O evento, promovido pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), em parceria com o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC), acontece no auditório da Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Santa Catarina, em Florianópolis, até sexta-feira (3/08).

O objetivo do seminário é discutir temas ligados à Guerra do Contestado, como a ocupação da terra no local do conflito, empreendimentos econômicos na região, religiosidade popular, Exército Brasileiro, memória e patrimônio do Contestado, entre outros assuntos, além da apresentação de filmes históricos. Os resultados da etapa de Santa Catarina serão apresentados no Seminário Nacional, que acontece em setembro, na cidade do Rio de Janeiro. A Guerra do Contestado ocorreu em Santa Catarina entre os anos de 1912 e 1916 e foi uma das maiores revoltas populares da história brasileira.

ENTREVISTA

Paulo Pinheiro Machado é professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde coordena o Curso de Graduação em História. É Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com Pós-Doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Universitat Autonoma de Barcelona. Tem experiência na área de História do Brasil, com ênfase no período do Império e nas primeiras décadas da República, especializando-se na Guerra do Contestado.

MPSC - Por que a história do Contestado não foi tão divulgada no Brasil como a de Canudos, por exemplo, ficando até mesmo proibida durante décadas em Santa Catarina?
Paulo Machado - A História do Contestado nunca foi proibida em Santa Catarina, mas por muitas décadas um silêncio público reinou sobre o tema, principalmente na educação escolar. Mas, por incrível que pareça, o Contestado é um dos movimentos sociais que conta com mais extensa literatura especializada. São dezenas de autores, tanto no campo dos estudos acadêmicos, como no campo mais geral dos cronistas e pesquisadores autodidatas. Essa produção é muito mais extensa, analítica e, em muitos aspectos, mais amadurecida que a de Canudos, por exemplo. Canudos repercutiu mais na literatura e no cinema, com a divulgação nacional das colunas de Euclides da Cunha no jornal O Estado de São Paulo (depois publicadas no livro). A produção literária e cinematográfica sobre o Contestado ocorreu muito tardiamente, com a obra de Guido Wilmar Sassi ( Geração do Deserto , 1964) e o filme de Sylvio Back ( Guerra dos Pelados ,1971), ambos prejudicados em sua divulgação pela Ditadura Militar. O movimento de Canudos produziu maior impacto na memória nacional pelo fato de Canudos ter ocorrido nos anos de grande instabilidade política do início da República, ao passo que a maioria dos combates do Contestado ocorrerem durante a I Guerra Mundial, quando a imprensa dedicou muito espaço ao conflito europeu. Além disso, a imprensa tratava o movimento como mais uma manifestação de "fanatismo do interior", reforçando antigos estereótipos sobre a "ignorância" e o "isolamento" dos "matutos", o que tornava a ocorrência apenas uma lembrança recorrente de nosso "atraso" como nação.

Em Santa Catarina, ao longo da Primeira República e em décadas posteriores, há um esforço de europeização do Estado, entendido na época como modernização, o que não era muito compatível com a memória do Contestado. A grande influência política da família Ramos, ao longo das décadas de 1930 a 1960, também contribuiu para esse esquecimento. Vidal Ramos, além de ser o governador de plantão no início do conflito, foi o principal aliado do Coronel Albuquerque, de Curitibanos. Nereu Ramos representou, como advogado, os interesses da Brazil Lumber and Colonization frente o Estado. Tudo isso contribuiu para o isolamento público do tema e para a sua restrição aos meios acadêmicos e aos memorialistas mais especializados.

MPSC - Como a questão da terra impactou o Contestado?
Paulo Machado - A questão de terras está entre as origens do movimento sertanejo do Contestado e foi de fundamental importância para a formação das primeiras concentrações de Taquaruçu e Irani, além de fornecer milhares de sertanejos para compor as populações dos redutos de Caraguatá, Caçador Grande, Bom Sossego, Santa Maria, Pedra Branca e São Pedro, entre outros menores. Todo o processo se deu em três níveis. Primeiro, o planalto serrano e o meio oeste catarinense eram uma região de fronteira de expansão agropastoril, onde os grandes fazendeiros acumulavam terras de pequenos posseiros, ervateiros e agricultores independentes, que eram transformados em peões e agregados ao latifúndio, fato que ocorreu fortemente nos municípios de Lages, Curitibanos e Campos Novos. Segundo, porque nos territórios contestados entre o Paraná e Santa Catarina pela disputa de limites que vinha desde o período colonial, muitos grandes proprietários paranaenses (oficiais da Guarda Nacional) grilavam terras públicas, habitadas por posseiros caboclos, e registravam essas propriedades em cartórios paranaenses. Esse fato ocorreu principalmente nas regiões de São Bento, Rio Negro, Itaiópolis, Papanduva, Timbó Grande, União da Vitória e nos campos de Palmas. Por último, a empresa norte-americana Brazil Railway Company apossou-se sobre extensas áreas - como concessão do Governo Federal ¿ de até 15 km de cada lado do leito dos ramais da estrada de ferro São Paulo - Rio Grande. Nesse período, foi criada uma empresa subsidiária, a Brazil Lumber and Colonization Company , que possuía um regimento de segurança com 300 guardas, a qual expulsou milhares de posseiros caboclos que viviam por várias gerações nessas regiões atingidas pela Estrada de Ferro.

MPSC - Quais as causas do Contestado?
Paulo Machado - Além da questão de terras, o movimento tomou uma expressão linguística e cultural por influência da passagem dos monges penitentes - como os diferentes indivíduos que assumiram a identidade de João Maria. A religiosidade popular, independente do clero e das autoridades locais, ajudou na implantação de um projeto próprio, as "cidades santas", uma invenção cabocla de uma vida de justiça e bem-estar. A resistência ao Coronelismo, a oposição aos desmandos de chefes políticos ligados ao Partido Republicano e o apoio dos antigos políticos federalistas, marginalizados do cenário político do planalto, também são causas do movimento.
MPSC - Qual o legado do Contestado?
Paulo Machado - O movimento do Contestado possui muitos legados que são, cada vez mais, recuperados pela memória e pela História deste importante conflito. Em primeiro lugar, apesar de ser militarmente derrotada em 1916, a luta camponesa demonstrou ter enorme capacidade de resistência e combatividade, apesar das grandes dificuldades vividas a longo de 5 anos, enfrentando tropas profissionais e fortemente armadas, das polícias de SC e PR, além de grande efetivo do exército nacional e grande número de "vaqueanos civis" - a tropa dos capangas dos grandes fazendeiros. A aventura cabocla consolidou a tradição cultural de João Maria e foi base para outros movimentos sociais como as concentrações de Palhano e Fabrício das Neves (Concórdia, 1924-25), o movimento dos Monges Barbudos (Soledade, RS, 1935-38) e o movimento dos Alonsos (Timbó Grande e Tamanduá, 1942). Para os habitantes do vale dos rios do Peixe, Negro e Iguaçu, a Lumber and Colonization Company teve de respeitar as posses de muitos caboclos, colaborando para a sua formalização. A recuperação da História e da Memória do Contestado vem acontecendo desde o início dos anos 1980 e está estreitamente associada à redemocratização da sociedade brasileira e à retomada da luta social pela posse da terra, com o crescimento da luta agrária nas últimas décadas.
MPSC - Você que é um estudioso e pesquisador da história da propriedade no país, como analisa a legislação agrária e os conflitos de terra no Brasil?
Paulo Machado - No Brasil, o acesso à propriedade formal da terra sempre foi um fator de distinção social. Além de representar uma posição destacada do ponto de vista econômico, ser proprietário, principalmente grande proprietário, significa o poder sobre homens sob sua dependência, ora como empregados, ora como agregados à grande fazenda, ou mesmo vizinhos mais pobres, que também caíam na dependência do Coronel - patente de oficial da Guarda Nacional que foi concedida à vários grandes proprietários entre 1831 e 1916. Além de sua clientela social, o proprietário possuía uma clientela política, daquela minoria alfabetizada, que votava nas eleições nos candidatos apresentados pelo Coronel, frequentemente sob a coação dos capangas. De um ponto de vista mais preciso, há um longo período de instabilidade jurídica da propriedade fundiária, desde as Sesmarias no período colonial até a Lei de Terras, em 1850. Mesmo República adentro, eram muito poucos os proprietários que tinham os seus registros regularizados. Mas o principal aspecto de legitimação da propriedade fundiária na História do Brasil sempre foi a força armada privada que os proprietários possuíam à sua disposição.
Fonte: 
Coordenadoria de Comunicação Social do MPSC