imagem dos expositores na audiência pública

Uma ação do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) para criminalizar a apropriação do ICMS declarado como devido mas não pago levou o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, a realizar, na segunda-feira (11/3), uma audiência aberta ao público em Brasília a fim de auxiliar a sua decisão. Barroso é relator do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 163.334, impetrado por proprietários de lojas de roupas em Santa Catarina denunciados pelo MPSC por não terem recolhido aos cofres públicos, no prazo determinado, os valores apurados e declarados do ICMS em diversos períodos entre 2008 e 2010.

"Uma empresa que postergue sucessivamente o recolhimento do ICMS cobrado do consumidor final, deixando de repassá-lo ao Fisco, sempre estará em vantagem concorrencial, eliminando as demais empresas que atuem com regularidade no segmento, ou pior, forçando-as a agir de idêntica maneira", expôs na audiência pública o Subprocurador-Geral de Justiça para assuntos Institucionais do MPSC, Procurador de Justiça Fábio de Souza Trajano, que representou o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (CNPG) e falou em nome dos Ministérios Públicos Estaduais.

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Trajano também informou aos participantes da audiência pública que hoje, em Santa Catarina, existem 6.133 empresas em pretensa situação de apropriação indébita tributária, e o índice de casos identificados de apropriação de ICMS representou, em 2018, 4,52%, ou seja, dos cerca de R$ 18 bilhões de ICMS declarados, aproximadamente R$ 821 milhões foram apropriados pelos contribuintes.

"Infelizmente perde quem age com correção, ganha quem descumpre a lei tributária, porque o que os números apontam é justamente a prática cada vez mais rotineira do planejamento tributário de não pagamento do ICMS", enfatizou o representante de todos os Ministérios Públicos estaduais na audiência. Trajano lembrou, ainda, que as políticas públicas em áreas como a saúde, a edução, a segurança provém do sistema tributário. "Age o Ministério Público, principalmente, para garantir a prestação de serviços públicos essenciais a população e para proteger aqueles que, em sua esmagadora maioria, cumprem fielmente as obrigações tributárias", complementou.

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O Coordenador do Centro de Apoio Operacional da Ordem Tributária (COT) do MPSC, Promotor de Justiça Giovanni Andrei Franzoni Gil, que também participou da audiência pública, demonstrou aos participantes que a apropriação indébita tributária não é algo novo nas cortes superiores - Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal - detalhando julgados que chancelaram a tese da penalização do não recolhimento do ICMS declarado como apropriação indébita tributária.

Franzoni Gil afirmou, ainda, que o plenário do STF já reconheceu que o artigo 2º, II, da lei n. 8.137/1990 tem correspondência, na legislação portuguesa, no delito de abuso de confiança fiscal, tendo já extraditado um cidadão português por conta deste crime. "Essa equivalência normativa do tipo penal brasileiro com o tipo penal português é relevante para que se possa afastar a arguição de violação da lei maior e da convenção de interamericana de direitos humanos", sustentou.

Sobre o resultado da audiência pública, o Coordenador do COT comentou: "Estamos satisfeitos com o resultado, principalmente por acreditar na prevalência da tese defendida. Cada cidadão que compra um produto paga, embutido no preço da mercadoria, parcela que se traduz no ICMS, tendo a expectativa que o tributo cobrado será entregue a quem de direito, o Estado, para execução das políticas públicas".


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Complexidade

Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, a sensibilidade da controvérsia demanda uma reflexão detida sobre a eficácia dos meios atuais de arrecadação tributária e os limites da política criminal tributária. Por isso, designou a reunião, que reuniu os representantes das partes, terceiros admitidos no processo e órgãos públicos diretamente interessados.

"A questão, evidentemente, transcende o mero interesse das partes envolvidas nesse HC", assinalou Barroso na abertura do encontro. "Como há muitas questões criminais, tributárias e fiscais envolvidas, me pareceu bem, antes de tomar uma decisão, ouvir o conjunto de pessoas aqui presentes".

Distorção

Ao encerrar a reunião, o ministro Barroso destacou o conjunto de manifestações extremamente qualificadas e proficientes e afirmou que todas serão levadas em consideração na sua decisão. Segundo o ministro, o sistema tributário brasileiro é provavelmente o mais complexo do mundo. "O compliance tributário demanda uma enorme quantidade de tempo, e nenhuma análise relativa à questão fiscal deve ser indiferente à complexidade do sistema", afirmou.

O relator do HC acredita que há uma "imensa distorção" no sistema, que é a ênfase no imposto sobre consumo, "um tributo indireto e que não consegue distribuir renda" e que incide igualmente sobre todos os consumidores. Barroso observou que a exacerbação do direito penal "talvez não seja o caminho ideal nas circunstâncias atuais do Brasil", mas ponderou que o não recolhimento dos impostos, embora possa ser um bom negócio para quem o pratica, é altamente prejudicial ao país e que a criação de vantagens competitivas para quem não age corretamente também não é desejável. "São muitas variáveis relevantes e complexas a serem levadas em conta", concluiu.

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O caso

O RHC 163334 foi impetrado por proprietários de lojas de roupas em Santa Catarina denunciados pelo Ministério Público estadual (MPSC) por não terem recolhido aos cofres públicos, no prazo determinado, os valores apurados e declarados do ICMS em diversos períodos entre 2008 e 2010. A soma dos valores não recolhidos, na época, era de cerca de R$ 30 mil.

Na denúncia, o MP-SC enquadrou a conduta como crime contra a ordem tributária nos termos dos artigos 2º, inciso II, e 11, caput, da Lei 8.137/1990 ¿ deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.

Os empresários foram absolvidos pelo Juízo de Direito da Vara Criminal da Comarca de Brusque (SC) por atipicidade dos fatos narrados na denúncia. Contudo, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), no exame do recurso do MPSC, determinou o prosseguimento da ação penal.

Visando ao restabelecimento da sentença absolutória, foi impetrado HC no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que denegou a ordem. Para a maioria dos ministros da Terceira Seção do STJ, o fato de o agente registrar, apurar e declarar o imposto devido não afasta a configuração do delito de apropriação indébita tributária, que não tem como pressuposto a clandestinidade. Segundo a decisão, basta a conduta dolosa consistente na consciência, ainda que potencial, de não recolher o valor do tributo devido. ¿A motivação não possui importância no campo da tipicidade¿, concluiu aquela corte.

Expositores

Na audiência pública, defenderam a possibilidade de penalização do não recolhimento do ICMS declarado como apropriação indébita tributária a subprocuradora da República Cláudia Marques, em nome do Ministério Público Federal; o Promotor de Justiça Giovanni Andrei Franzoni Gil, pelo MP catarinense; Luciana Oliveira, Procuradora do Distrito Federal, que falou em nome das Procuradorias-Gerais do Estados e do DF; Fábio de Souza Trajano, Subprocurador-geral de Justiça de Santa Catarina, pelas Procuradorias-Gerais de Justiça dos Estados; e, por fim, Luís Cláudio Carvalho, secretário da Fazenda do Rio de Janeiro, representando as Secretarias de Fazenda dos Estados.


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CONFIRA A ENTREVISTA DO PROMOTOR DE JUSTIÇA GIOVANNI ANDREI FRANZONI GIL, COORDENADOR DO CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DA ORDEM TRIBUTÁRIA DO MPSC, SOBRE O TEMA:

COMSO - Qual o objeto da audiência pública?

Giovanni Andrei Franzoni Gil - A audiência tratou não o caso concreto dos autos, mas o tema jurídico que baseia sua existência: o STF pretende avaliar se é possível criminalizar a conduta de apropriação do ICMS.

COMSO - O que é a apropriação tributária do ICMS?

Franzoni Gil - Toda vez que uma operação de circulação de mercadorias, uma compra e venda, por exemplo, ocorre, há a incidência de um tributo sobre consumo, o ICMS. Assim, o comprador de uma mercadoria sempre paga, dentro do preço, parcela que se refere a esse imposto, na expectativa de que estes recursos sejam entregues ao Estado para o cumprimento de sua finalidade maior, a prestação de serviços públicos. Se o contribuinte, o vendedor, retém para si esse valor, não o entregando ao Estado, defende o MPSC que configura-se o crime de apropriação tributária, previsto no artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/1990.

COMSO - O não pagamento de qualquer tributo, como o IPVA, pode configurar esse crime?

Franzoni Gil - Não. A lei é taxativa ao prever essa incidência para impostos que sejam cobrados dos adquirentes, ou seja, só é possivel falar na ocorrência do crime nos tributos sobre o consumo, seja ele de bens ou serviços, como o ICMS (Imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços, de titularidade dos Estados) ou o ISS (Imposto sobre serviços, de titularidade dos Municípios).

COMSO - Todos os contribuintes do ICMS praticam essa conduta?

Franzoni Gil - Não. Em primeiro lugar, devemos destacar que em Santa Catarina, aonde essa criminalização já ocorre desde 1993, o peso total sobre a arrecadação, apesar de expressivo, é bastante baixo se tomado por parâmetro os demais Estados da Federação, atingindo R$ 821 milhões do total declarado de R$ 18 bilhões em 2018. Isso equivale a cerca de 4,52%. Isso significa que a grande maioria dos contribuintes age com correção, cumpre suas obrigações e entrega ao Fisco esse valor, que não pertence ao vendedor/fornecededor de mercadorias e serviços. Mas há uma minoria recalcitrante, que utiliza o dinheiro público, que é cobrado dos compradores, para proveito próprio. É quanto a esses que age o Ministério Público, visando garantir que o tributo chegue aos cofres públicos e retorne ao cidadão como serviços de saúde, educação, segurança. Além disso, permitir que esse pequeno grupo de pessoas retenham esses valores significa punir a grande maioria dos contribuintes que age com correção, cumprindo sua obrigação, pois é inevitável que logo serão atingindos por uma predatória concorrência desleal decorrente do privilégio de incremento da receita daqueles com os recursos públicos. O que deve regular o sucesso da atividade empresarial é o preço, a capacidade de inovação, e não o sistema tributário ou a viabilidade da retenção de recursos públicos.

COMSO - E quanto a essa parcela menor, mas significativa. Estão sujeitos a serem presos?

Franzoni Gil - Dificilmente teremos prisão nesses casos. Desconhecemos, de fato, que nestes mais de 25 anos de repressão a conduta alguém tenha sido preso apenas por apropriação tributária. A legislação penal tem instrumentos que limitam a viabilidade de processos penais de pequeno valor, ao reconhecer o princípio da insignificância. Apenas essa aplicação reduz a gama de 38.349 grupos econômicos que hoje procedem ou já procederam com a apropriação desses recursos para cerca de 6.133 grupos econômicos.

Além disso, existe a possibilidade de regularização da conduta, com o pagamento do tributo, que elimina o crime, ou mesmo o parcelamento da dívida com o FISCO, que impede o processo criminal se regularmente quitado. A investigação criminal, se iniciada, poderá ainda avaliar a existência de alguma causa que exclua o crime - excludentes de culpabilidade-, como, por exemplo, o calote do comprador ao vendedor. Superadas essas questões, como se trata de um delito de menor potencial ofensivo, com pena máxima de 2 anos de detenção, é possível a aplicação de benefícios processuais como a transação penal, suspensão condicional do processo ou, em caso de condenação, a suspensão condicional da pena.

Por fim, em razão da pena do crime, as penas serão convertidas em penas alternativas, como prestação de serviços comunitários ou multa, isso se, é claro, não ocorrer a prescrição, já que o sistema processual penal é complexo, com inúmeros recursos, e em razão da pena aplicável é uma possibilidade bastante concreta. Mas, ainda assim, acreditamos que a existência do crime cumpre sua função primordial, a de prevenção geral, servindo de alerta válido a evitar sua ocorrência.

COMSO - Quais as consequências de uma decisão negativa do STF?

Franzoni Gil - Além da perda da prevenção geral, com consequente incremento da prática da conduta e da sensação de impunidade, vemos um grande potencial de prejuízo aos cofres públicos e, por consequência, maior ineficiência dos serviços públicos prestados à população, que hoje já estão longe do ideal. Esse valor, reiteramos, é destacado no documento fiscal; está lá quanto é pago de tributo ao Estado naquela operação, e quem é cobrado por ele, o adquirente da mercadoria, pode e deve exigir para que o recurso, que é público, atinja essa finalidade. Sem contar em inúmeros casos graves, em que a própria pena hoje aplicável é irrisória ante seu potencial lesivo, como planejamentos tributários focados no não pagamento de tributos, ligados a manobras de lavagem de dinheiro para ocultação desse proveito do crime.

Em SC, temos casos de empresas que permaneceram por quase 5 anos praticando essa conduta, sob o argumento de crise. Quando investigado a fundo - e só foi investigado justamente pela existência do crime aqui discutido - foi possível compreender a dinâmica da atividade, que extraía recursos das empresas para empresas de fachada, em manobra de lavagem de dinheiro, para proveito do crime e frustração da execução fiscal. Isso não acontece apenas aqui, outros Estados da Federação tem apontado para o mesmo problema. O afastamento desse crime, nesses casos, eliminará o delito de lavagem de dinheiro e, por consequência, deixará impune essa prática.